3. Revelações

Luiz Carlos Pereira Tourinho, “Paranaense-Português” pelos quatro pontos cardeais (tronco das famílias Alves, Tourinho, Ferreira e Pereira), sempre demonstrou um desejo ardente de servir ao Brasil com o mesmo amor, entusiasmo e patriotismo que lhe fora exortado na Escola Militar.

 

A integridade moral e a conduta ilibada marcaram sua passagem pela vida civil e militar. Educado, cordial e respeitoso do contraditório, foi admirado em todos os níveis em que atuou seja como engenheiro, militar, professor, gestor, político, administrador, escritor ou historiador. No seio familiar foi um exemplo de carinho, respeito, amor, amizade e disciplina.

 

Foi um verdadeiro MESTRE. Valorizou a transferência do conhecimento como questão crucial para combater as desigualdades sociais no Brasil e fator preponderante para promover inovação de conceitos e a concepção de novas ideias. Via como obrigação moral compartilhar com a sociedade o conhecimento que na vida adquiriu (sem reivindicar qualquer tipo de gratificação financeira ou remuneração). Trabalhou dos 19 aos 84 anos. Cumpriu com seu dever cívico. Nunca cobrou (ou visou o lucro) por palestras que ministrou, por participações em congressos como orador, por cursos extracurriculares de treinamento e aperfeiçoamento de profissionais na área de Engenharia, por entrevistas concedidas aos meios de comunicação ou pelos livros que publicou.

 

Apaixonado pelo pensamento científico e pela busca do amplo conhecimento (matemática, física, economia, estatística, geografia, geometria, astronomia, história, literatura, etc.), Luiz Carlos Pereira Tourinho se declarava um livre pensador “Positivista” assim como foi seu pai, seus professores e colegas da Escola Militar (positivismo é a corrente filosófica de COMTE que classifica as ciências na ordem decrescente de generalidade e crescente de complexidade dos fenômenos que estuda – o espiritismo e a mediunidade são entendidos como um fenômeno físico). Estudioso, soube interpretar e situar. Na ciência e na filosofia estudou trabalhos produzidos por gênios da estatura de René Descartes, João Kepler, Galileo Galilei, Einstein, Fermat, Blaise Pascal, Laplace, Bernouill, Gauss, Augusto Comte, São Tomás de Aquino, Bertrand Russel, Voltaire, Pitágoras, etc.

 

Desbravou todos os rincões e fronteiras do território paranaense ao longo da vida (relevo, rios, montanhas, vegetação, vilas, cidades, estradas, portos, pontes, ferrovias, estreitos, canais, ilhas, etc.):

“Antes de chegar à cidade tomei o atalho que conduz à péssima estrada das Cataratas, com extensão aproximada de 40 quilômetros. Se a estrada era tão má quanto a anterior, ou talvez pior, em compensação a paisagem era deslumbrante. Assim como ao final dos campos de Laranjeiras começava o país das araucárias, agora percorria o reino dos palmitos. Inacreditável! Como podia um desnível de apenas 300 ou 500 metros provocar tamanha transformação no revestimento florístico, na mesma latitude? Para onde me virasse só via madeira de lei. Imbuia, própria para trabalhos de marcenaria. Canelas e canjeranas, apropriadas para confecção de tapumes e ripamentos. Madeiras duras, como a peroba, a aroeira, a sucupira, capazes de suportar grandes esforços de compressão e flexão. Cedros de todas as qualidades. O angelim perfumoso. Cabreúva, angico e tantas outras espécies que revestem inteiramente o território do baixo Iguaçu” (Toiro Passante IV – Tempo de República Getuliana, página 519).

ou,

“Com os óculos de alcance instalado na plataforma fiz o giro do horizonte, como aprendera em Realengo. Comecei pelo aparelho litoral do Superagui, tão retilíneo que se podia cobri-lo com o retículo da luneta. Barra do rio Ararapira, onde começa a linha divisória Paraná-São Paulo. Na largura, Superagui não tem mais de 5 km. Só três elevações, as que tinha visto na viagem de barco. Cursos d’águas instáveis. Saltei para a ilha das Peças. Saco vazio perdido nas águas da baía de Laranjeiras. Avistei Guaraqueçaba. Não descobri o porto de Taguaçaba. Pelo colorido da mata ciliar localizei o vale do rio Serra Negra. Percorri com os olhos a região escondida na densa mata, que tem por espinha dorsal a Serrinha. Morre nos espigões do ltinguçú e Feiticeiro. Varejei o mar antoninense. Baía estreita. Difícil para manobra de navios. Inflete para o norte. No fundo o desaguadouro do rio Cachoeira. A mancha esbranquiçada, no sopé da Serra do Mar, devia ser Cacatú. Sempre no sentido contrário dos ponteiros do relógio cheguei ao povoado de São João, entroncamento do ramal rodoviário de Porto de Cima, Morretes e Paranaguá, na Graciosa. Corri a vista no emaranhado de canais que forma o delta dos rios ltiberê, Maciel e Caraguaçú, reino da mangróvia. Completei 180 graus. A luneta enfiou de vez Pontal do Sul, Matinhos, Caiobá, Guaratuba e barra móvel do rio Saí, onde começa a discutida linha divisória com Santa Catarina. Abandonei a luneta. Chamei os companheiros para conhecer a ilha do Mel. Do alto do morro tinha-se visão completa. Semelhante à península itálica, porém cem vezes menor, tem 2.742 quilômetros quadrados de superfície” (Toiro Passante – Tempo de República Democrática, página 393).

 

Intelectual e profundo conhecedor do assunto foi um Paranista autêntico. Defendeu a honra e os interesses do Paraná. Valorizou as riquezas naturais, promoveu a cultura, difundiu a história, defendeu os interesses econômicos e elevou o espírito do povo paranaense seja através das suas obras que revivem e recompõem a história ou seja através dos cargos e funções em que atuou.

 

Luiz Carlos Pereira Tourinho não se considerava um historiador. Seu estilo desobedece ao rigorismo exigido dos aficcionados da História Científica. Intitulava-se um contador de estórias. Os fatos, aborda-os de forma peculiar, sem ordem cronológica. Preferiu relatá-los onde ocorreram e por uma perspectiva pessoal. Seu trabalho (crônica-conto), em excelente estilo narrativo, está impregnado de fatos instigantes que se preocuparam em relatar a história do homem e sua sociedade. Como reúne ficção e fatos históricos, numa trama de entrosamento perfeito, é difícil dizer onde termina o comentário da crônica e onde começa a estória do conto, duas coisas que se alternam continuamente. Dos vários temas que abordou mais falou dos outros e menos de si (clássica modéstia do povo paranaense). É constante a crítica voraz e impiedosa da política da época. Excursiona pelas contradições do Cristianismo. Vez ou outra permite um traço fugaz de poesia. É um autor arrojado. Não há dúvidas que seu trabalho suscita controvérsias e aplausos.

 

Lutou por uma sociedade justa, moderna, transparente, enxuta e que pudesse proporcionar oportunidades iguais para todos os brasileiros. Nunca se apropriou do que não era seu. Nunca se aproveitou de cargos importantes para obter favores ou vantagens indevidas. Nunca se calou diante da injustiça, do malfeito, do ímprobo, do incorreto, ou do ilegal. Nunca deixou de observar seus deveres, cumprir a lei e zelar pelos bons costumes.

 

Quando faleceu (1998), aos 84 anos, deixou um patrimônio modesto formado por duas residências: a residência oficial no planalto de Curitiba e a residência de veraneio na planície litorânea. Morou na residência oficial por quase 40 anos (esquina da avenida Desembargador Hugo Simas com a rua Teffé no bairro do Pilarzinho). Ali funcionou seu Quartel General (biblioteca, escritório, arquivos, estudos, pesquisas e reuniões). Casa de alvenaria e dois pavimentos, adquirida em 1958, foi construída em estilo germânico pelo Consul Alemão que viveu em Curitiba (telhados íngremes, altas cumeeiras, claraboia dormer, lareia, sótão, paredes internas e forros revestidos com tabuinhas de pinho, muros de pedra, jardim com jasmineiros, cedros e araucárias).

Luiz Carlos Pereira Tourinho com a esposa Sylvia, filhos e netos no jardim da residência construída em estilo germânico no bairro do Pilarzinho em Curitiba (1964).
Luiz Carlos Pereira Tourinho com a esposa Sylvia, filhos e netos no jardim da residência construída em estilo germânico no bairro do Pilarzinho em Curitiba (1964).

Na residência do Pilarzinho, além de responder por uma pesada rotina de trabalho (oficial do exército, professor universitário, chefe de Departamento na UFPR, presidente do IEP, presidente do IHGPR, colunista, historiador, pesquisador, escritor, político, palestrante, etc.) dedicou-se, também (ao lado da inseparável esposa Sylvia), a árdua, mas sublime missão de criar e educar três netos (Luiz Anselmo, Luiz Carlos e Silvana) sob sua guarda desde muito cedo até atingirem a maioridade. Filhos, noras, genro, cunhados e netos costumavam se reunir nas tardes de domingo na residência do Pilarzinho. Sylvia recebia os familiares com o tradicional bolo de fubá, pão-de-ló, pudim de leite (sua especialidade), bule de chá, café e pinhões colhidos no quintal aquecidos sobre o fogão à lenha. Essa função era para Sylvia uma tarefa intransferível. Nas tardes frias curitibanas, os netos, mais novos, se revezavam no entorno do fogão para ouvir histórias de lobisomem, saci-pererê, mula sem cabeça e boitatá que Sylvia costumava contar com grande deleito.

 

A residência de veraneio localizava-se em um tranquilo balneário do litoral paranaense, no município de Matinhos, conhecido pelo nome de ‘Praia das Gaivotas’ (esquina da avenida Beira Mar com a rua Professor Erasto Gaertner¹). Local despovoado, foi escolhido, estrategicamente, para momentos de descanso e reflexão. No litoral, funcionou sua oficina de inspirações por um período de 26 anos. A residência localizava-se nos arredores de Paranaguá, Morretes, Antonina, Guaraqueçaba, Guaratuba e Ilha do Mel (localidades ricas em eventos que marcaram a história do Paraná). Além dos aspectos históricos, a região litorânea, adornada pela exuberante Mata Atlântica, lhe trazia gratas recordações pois, na infância aventureira, viveu momentos saudosos no convívio da família pelo lado materno (tios e primos), tronco das tradicionais famílias PEREIRA, de Paranaguá, e FERREIRA de Morretes.

( - 1978 - )
( - 1978 - )
( - 2013 - )
( - 2013 - )

Residência do clã Tourinho no Balneário Gaivotas (litoral paranaense) em dois diferentes momentos: 1978 e 2013.

Entre os meses de dezembro e fevereiro, a residência de veraneio proporcionava momentos raros de felicidade para toda a família (residência de alvenaria e pavimento térreo, projetada em 1972, pelo filho mais novo, também engenheiro, Plínio Tourinho Neto). No verão, o clã Tourinho se congregava na modesta casa, sob a batuta do “vô Luiz” (para uns), “tio Luiz” (para outros), “general” (para vizinhos e amigos), “professor” (para os conhecidos do meio acadêmico) ou, simplesmente, “seu Luiz”. Ali, se reuniam filhos, noras, genro, netos, sogra, cunhados, sobrinhos, amigos e agregados da família.

 

O balneário das Gaivotas, era uma região descampada com escassas opções de serviço e comércio. Contava com uma infraestrutura precária de comunicação e entretenimento. O funcionamento de equipamentos como telefones, televisores e rádios era totalmente instável em função do paredão formado pela cordilheira da Serra do Mar que separa o planalto de Curitiba da planície litorânea. Os vizinhos contavam-se nos dedos e conheciam-se todos.

 

A falta de opções para divertimento agiu como um catalisador dos laços familiares estimulando o diálogo e promovendo uma saudável interação no convívio entre as diferentes gerações. As relações se tornaram mais intensas e harmoniosas fazendo do convívio familiar algo prazeroso e memorável. As tardes e noites de verão sempre foram muito divertidas e agradáveis. A família se reunia na sala de jantar para conversar, jogar baralho e ouvir as estórias ou piadas que o patriarca costumava contar (as piadas do repertório de Luiz Carlos Pereira Tourinho sempre foram muito cândidas e engraçadas alegrando a todos os ouvintes sem exceção).

Luiz Carlos Tourinho com esposa, netos e sobrinhos-netos na festa que comemorou seus 70 anos.
Luiz Carlos Tourinho com esposa, netos e sobrinhos-netos na festa que comemorou seus 70 anos.

O gosto por contar estórias e piadas vai além das divertidas reuniões que comandava no ambiente familiar. O perfil brincalhão repetiu-se, também, no ambiente acadêmico quando buscava meios alternativos para tornar as aulas de engenharia mais interessantes e menos monótonas. O eterno espírito jovial, temperamento bem-humorado e gênio expansivo se revelam em diversas passagens dos livros que publicou. Constam, em alguns episódios, lances triviais e muito divertidos como, por exemplo:

“O Presidente Dutra ao ler a placa ao qual estava escrito: EM OBRAS, perguntou ao seu Ministro: – que empresa estatal é essa EMOBRÁS que não conheço?”

 

“Nasceram três gêmeos. Receberam os nomes de Nação, Pátria e Getúlio. Alguém perguntou ao pai como passavam as crianças: – A Pátria está dormindo, a Nação chorando, o Getúlio mamando…”

 

“Em visita oficial a França, o Ministro da Guerra, Hermes assim apresentava mulher e sogra na língua gaulesa: MA FEMME ET LA MER D´ELLE”

 

“O Pilarzinho cheira a burgo alemão. Vingou o toque tedesco: na arquitetura, na jardinagem, nos costumes, no sotaque, na linguagem. Ficaram comuns diálogos como esse:

– Comarréia, frau Érrica … vai uma vez no feirra?

– Moin, frau Frida …iá, iá, iá … imo junto?

– Mim não pode, frau Érrica … minha marrido Otto ganhô brruto ferrida no perna.

  Faiz favor comprá prô êle o Cassête do Povo?

– iá, iá … ofidersen frau Frida.

– Ofidersen, frau Érrica”

Luiz Carlos Pereira Tourinho teve uma vida longa e plena marcada pelo sentimento do dever cumprido. A morte é, inquestionavelmente, o mais democrático e menos preconceituoso dos acontecimentos. Por onde passou deixou um verdadeiro legado que suscita o respeito e admiração na alma das pessoas que, direta ou indiretamente, desfrutaram as lições e bons exemplos deixados pelo MESTRE em vida e obra.

“Quando morre alguém, perde-se vida, claro. Perde-se vida, contudo, na proporção em que pulsava. Quando perde-se um homem que lutava por pontos de vista, quando perde-se um homem que defendia ideais com o entusiasmo de um guerreiro e a audácia de um herói, perdem-se muitas vidas. Ali, naquele arrebatamento e multidiversidade, existiam vários seres humanos. Abundâncias para serem usufruídas e compartilhadas mesmo passivamente.

 

Perder é a palavra que se usa para tentar definir a solidão, porque deseja-se a continuação da presença forte, dominante, assestando inteligência em direção aos desdobramentos modificados da vida. Aquele, entretanto, que definiu decididamente o seu território deixa marcas depois de ter ido embora.

 

Em nossos tempos onde a sagacidade oportunista tornou-se a única virtude compreendida, mais lamentável a ausência das virtudes verdadeiras de outrora. O reconhecimento foi pequeno? Ora, quem não está sujeito! Os mais laureados ainda armazenam muitas mágoas. O reconhecimento que importa é o que conseguimos devotar para nós mesmos.

 

O Paraná acaba de perder alguém que pensou esse Estado com determinação. Um homem que deixou impresso em suas obras um imensurável amor pelo Estado, pelo questionamento dos modelos adotados e a vontade de ver modernização com racionalidade e dialética.

 

Desnecessário, nesse momento, falar de labutas, descrever ideários, definir a extensão da influência, a honestidade da carreira ou relacionar os cargos que ocupou. Mais significativo é procurar entender o sentido altruísta e apropriado em que atuou a mobilização de suas insinuantes energias.

 

Grandes cargos têm sido ocupados por homens tão pequenos e grandes fortunas alcançadas por almas tão mesquinhas que quase é uma vergonha atingi-las.

 

A maior generosidade, sem dúvida, é a generosidade das idéias. Por todos os lados em que olhemos veremos enrustidos, escamoteados, os que têm acanhamento ou temor de ser e de mostrar o que são.

 

Parabéns Luiz Carlos Tourinho, foi um prazer vê-lo falar, foi um gozo vê-lo pensar, foi um marco vê-lo polemizar e foi uma tristeza vê-lo partir.”

Homenagem póstuma de autoria do sobrinho-neto, o advogado Luiz Roberto Nascimento de Abreu

¹ Erasto Gaetner, ilustre Prefeito de Curitiba, sancionou a Lei Nr. 472, de 5 de maio de 1952, homenageando o General Plínio Tourinho (pai de Luiz Carlos Pereira Tourinho), com o nome da praça em frente ao Estádio Durval de Brito e Silva.